COMO FAZER UM TESTAMENTO EM TEMPOS DE COVID-19

COMO FAZER UM TESTAMENTO EM TEMPOS DE COVID-19?

 

Nosso Código Civil prevê a possibilidade de três espécies de testamento ordinário: público, cerrado ou particular. Além desses, há os especiais: marítimo, aeronáutico e militar, para circunstâncias específicas.

Em épocas normais, sempre aconselho a lavratura de um testamento público, que é lido e assinado pelo testador, por um tabelião ou por seu substituto legal e por duas testemunhas, já que, além da segurança jurídica advinda da fé pública do tabelião, não há risco do testamento ser perdido, omitido ou destruído. Os tabelionatos têm a obrigação de informar periodicamente o Colégio Notarial do Brasil sobre os testamentos lavrados em seus cartórios e esses dados são mantidos em sigilo, apenas se tornando públicos após o falecimento do testador, quando é possível o pedido de certidão sobre existência de testamento, que inclusive é exigida para qualquer tipo de inventário.

Ocorre que neste momento, enquanto por prudência devemos permanecer em quarentena por recomendação da Organização Mundial de Saúde e do Ministério da Saúde, como única medida para evitar a contaminação e o avanço acelerado no Covid-19, a maioria dos cartórios de notas não estão realizando testamentos públicos.

Exatamente neste momento de incertezas e de fragilidade, quando muitas pessoas desejam fazer um testamento, não é fácil conseguir em pleno período de isolamento social três testemunhas, que não sejam familiares, para a realização de um testamento particular, sem que o testador e as testemunhas corram risco.

A solução então passa a ser o testamento excepcional, previsto no artigo 1.879 do Código Civil, que dispõe que “em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular de próprio punho e assinado pelo testador, sem testemunhas, poderá ser confirmado, a critério do juiz”.

Confesso que, no dia a dia da advocacia, não é comum sermos consultados a respeito desse tipo de testamento, até porque quem está em uma situação realmente excepcional não tem condições de aguardar a opinião de quem quer que seja. Porém, no momento, alguns clientes que já estavam em fase de finalização do testamento público se mostram muito aflitos, o que me levou a um estudo mais aprofundado do assunto, pois entendo que essa forma de testar é a única viável durante a pandemia.

O mestre Zeno Veloso[1] menciona que o artigo 1.879 do Código Civil foi uma sugestão do professor Miguel Reale, inspirado no Código Civil alemão (BGB), e que o termo “circunstâncias excepcionais” dá a ideia de urgência, de imprevisibilidade, de fatos graves. Ainda diz que, embora o direito esteja sempre em desenvolvimento, dá passos para a frente inspirado em instituições do passado, citando que as Ordenações Filipinas e o direito romano já previam a possibilidade de uma forma especial de testar em tempos de peste. Certamente, nem mesmo Zeno Veloso, com suas divertidas histórias, costumeiras em suas brilhantes palestras, poderia imaginar, ao escrever  seu artigo sobre os testamentos particulares, que pouco tempo depois um vírus fatal para muitos espalhar-se-ia com tamanha rapidez, paralisando repentinamente o mundo e podendo ser considerado um justo motivo para a elaboração do testamento excepcional.

O respeitado civilista José Fernando Simão[2], ao comentar o artigo 1.879 do Código Civil, observa que “a expressão circunstância excepcional, constante do art. 1.879, constitui um conceito aberto deixado pelo legislador para preenchimento caso a caso”. Cita ainda o Enunciado no. 611 da VII Jornada de Direito Civil, que vincula a eficácia desse testamento à elaboração de outro ordinário, em até 90 dias subsequentes ao fim da circunstância excepcional que autorizou sua confecção.

Em suma, enquanto persistir a necessidade de isolamento social, aqueles que sentirem a necessidade, desde que em plena saúde mental, poderão fazer um testamento de próprio punho, preferencialmente aconselhado por um advogado especializado em direito sucessório, mencionando a circunstância totalmente excepcional relacionada ao Covid-19, sem a necessidade do comparecimento em cartório e da assinatura de qualquer testemunha.

Embora haja entendimentos em contrário, eu aconselho a cautela de elaboração de um testamento público quando a quarentena não se fizer mais necessária.

[1] Artigo de Zeno Veloso “Do Testamento Particular” em Arquitetura do Planejamento Sucessório, Daniele Chaves Teixeira (Coord.), 2ª edição, 2020, Fórum.

[2] José Fernando Simão em Código Civil Comentado Doutrina e Jurisprudência, Anderson Schreiber – Forense, 2019.